Os funcionários novos da Fundação CASA/SP, não conhecem ainda as trágicas histórias da - Antiga FEBEM/SP.
Por isso neste espaço iremos a cada semana contar uma fase desta instituição que desde sua criação como Pró Menor, teve momentos de brilho e resultados positivos, porém quando passou a ser administrada pelo Governo do PSDB, transformou-se em um verdadeiro calabouço para servidores e adolescentes.
Dedico este espaço a memória do grande e saudoso companheiro Geraldo José do Nascimento Padredi, um dos maiores profissionais que já conheci nesta Fundação e que me deixou de herança um arquivo de mais de 35 anos de história.
O ano de 1999, foi o ano das tragédias anunciadas e todos os servidores que trabalharam nesta instituição neste período, lembram-se muito bem dos vários discursos lançados por entidades e pessoas que se diziam defensores dos direitos das crianças e adolescentes, que, fortalecidas pela postura persecutória aos servidores promovida pelo Ministério Público das varas da infância da capital, somadas as maquiavelices da direção da instituição e Governo, promoveram naquele ano os mais tristes episódios já vistos na Fundação.
No inicio de 1999, os servidores resolveram se rebelar, confiantes na nova direção do sindicato da categoria e revoltados com as acusações feitas contra estes pelas entidades e Ministério Publico em função da morte de um interno na UI 7 no Complexo Tatuapé no final de 1998.
Os servidores se organizavam e a cada acusação davam uma resposta com manifestações e rebatendo na imprensa os fatos a eles imputados.
O curioso foi que tanto as entidades, MP quanto o Governo não estavam acostumados a serem enfrentados perante a sociedade pelos trabalhadores e menos ainda pelo seu órgão de representação ou seja o sindicato.
O fato era que a direção do sindicato que até 15 de dezembro de 1998 era Presidida por Aparecido Sant'ana, tinha uma postura igual a gestão do sindicato de hoje, ou seja, tinha a postura de fazer composição com a Diretoria da FEBEM/SP e com as entidades de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente em detrimento aos interesses dos trabalhadores.
Porem a nova direção que assumiu a entidade sindical em 15 de dezembro de 1998 Presidida por Antonio Gilberto da Silva, tinha uma postura chamada por muitos de radical, uma vez que, esta direção não compunha amigavelmente com aqueles órgãos e tinha como objetivo a defesa incondicional dos direitos e interesses dos trabalhadores.
Entre os meses de janeiro a julho de 1999, os trabalhadores confiantes na direção sindical realizaram 14 manifestações e 2 paralisações de advertência de uma hora, demonstrando que de forma alguma iriam aceitar a responsabilidade da situação caótica por qual passava a instituição.
Seguindo a orientação do sindicato os trabalhadores passaram a não mais segurar as unidades na "unha", ou seja, com o discurso de que eram educadores e não carcereiros, estes passaram a adotar uma postura de não utilizar da força necessária como determinava a direção nos casos de rebeliões e tentativas de fuga. Assim, passaram a se resguardarem e a retirar dos lábios de seus acusadores o titulo de torturadores e espancadores de menores.
Com as unidades superlotadas as consequências foram imediatas, inúmeras rebeliões no Complexo Tatuapé, culminando com a substituição do diretor de divisão. Mas cedendo a pressão das entidades de defesa, foi alçado como novo diretor de Divisão do Complexo o Sr. Vicente mais conhecido pelo funcionários como "Geléia".
A indicação deste cidadão foi um desastre e de pronto desaprovada pelo corpo funcional daquele complexo.
Todos os servidores eram conhecedores da postura de Vicentão em favorecer os jovens e retirar dos servidores toda a autoridade, além do que, as relações deste senhor com o Padre Julio e com as entidades de defesa, com toda certeza descarregaria sobre os servidores a responsabilidade das ocorrências nas unidades, sem falar que, ali começou a ser implantada a estrategia do fim do Complexo Imigrantes, pois este era o único Complexo onde os funcionários ainda possuíam total controle das unidades.
Com Geléia na divisão do Complexo Tatuapé, as entidades passaram a ingressar com toda facilidade no interior das unidades e a promoverem a discórdia entre os jovens e os servidores, fortaleciam os internos ao ponto deste passarem a enfrentar os servidores diretamente, bem como a armarem denuncias carregadas de mentiras e sem provas, forçando o afastamento e o adoecimento de centenas de servidores.
Muitos dos internos por seguirem a cartilha a eles colocada pela Divisão, ganhavam como premio passeios externos, festas em um sitio que a maioria dos servidores diziam ser de propriedade de Geléia.
As festas eram regadas com todo tipo de absurdo e claro onde a maioria acabava não voltando, empreendendo fugas facilitadas, mas que, quase nunca eram apuradas pela Direção da Fundação ou pelo MP.
Para os servidores, tais fugas facilitadas tinham um objetivo claro, qual seja, o de explodir com o Complexo Imigrantes, pois era sabido que a maioria destes internos acabariam novamente infracionando e retornando a instituição.
Como a porta de entrada da instituição era o Complexo Imigrantes e este era o único lugar que os servidores mantinham controle absoluto, afinal os diretores que ali comandavam e o corpo funcional eram altamente preparado.
Com toda certeza ao retornarem, estes jovens previamente orientados, levariam aos outros jovens as orientações e organização que estes obtiveram durante suas permanências no Complexo Tatuapé.
O sindicato da categoria começa a denunciar na imprensa as maracutaias e armações que a Divisão e as tais entidades, estavam realizando na Fundação e para chamar a tenção da imprensa e mostrar a realidade decreta estado de greve, mobilizando e incentivando os servidores a não fazerem mais horas extras e a não entrarem no local de trabalho por falta de segurança.
O diretor de Divisão sentindo-se acuado tenta reprimir o movimento com ameaças e fazendo acordos com os internos, dando a eles mais poder inclusive de decidirem qual servidor poderia ou não trabalhar nas unidades.
Revoltados os servidores aderem ao chamado do sindicato em peso e ao ver que os servidores começaram a abandonar seus postos de trabalho, permanecendo apenas alguns que se colocavam na condição de pelegos, os adolescentes inciaram uma mega rebelião que destruiu todas as unidades do Complexo Tatuapé, com centenas de fugas, dezenas de jovens feridos e alguns funcionários também feridos.
Após dois dias de rebelião a tropa de choque autorizada pelo governador intervem no Complexo e retoma o controle. Porém o saldo foi a destruição quase total das unidades, dos veículos da Fundação entre eles alguns veículos de funcionários.
A destruição foi de tal monta que parte dos internos foi transferida para um presidio localizado ao lado do Complexo Carandiru e outro localizado no Hipódromo, além do complexo Brás que até então continha apenas duas unidades entre elas a UAI.
Neste episódio, o que revoltou os servidores, foi a facilitação de fuga promovida descaradamente pelo então funcionário da FEBEM/SP Padre Julio Lancelotti que, durante a transferência dos adolescentes do Complexo Tatuapé para o Brás, saiu com mais de 60 jovens em um ônibus sozinho , lembrando que os funcionários de diversas unidades se dispuseram a acompanha-lo porém, ele dispensou e levou apenas uns dois ou três que eram de sua confiança. Na primeira parada que o ônibus deu a maioria absoluta dos jovens se evadiram, saltando pelas janelas.
Mesmo sendo o Padre funcionário da instituição e recebendo um salário significativo, nenhum procedimento sindicante ou criminal foi instaurado contra este, como o MP costumava a fazer contra os demais servidores da instituição.
Com o fortalecimento do sindicato, cujo Presidente ocupava quase todas as páginas dos jornais e a maioria absoluta dos canais de televisão e rádio, o Governador do Estado Mario Covas sentiu-se acuado, e resolveu ir pessoalmente ao Complexo Tatuapé verificar a situação.
Chegando lá este durante uma entrevista coletiva tentou responsabilizar os servidores e o sindicato, mas foi interrompido pelo presidente do sindicato que ao ficar cara a cara com o Governador desmoralizou o mesmo abrindo em sua frente um dossiê elaborado pela entidade sindical, contendo centenas de documentos oficiais da própria fundação que demonstravam a responsabilidade da Direção e do Governo.
O Governador Mario Covas irritado e desmoralizado, tentou na frente da imprensa agredir o sindicalista que partiu para o revide, após um bate boca de quase 3 minutos cara a cara o Governador foi retirado pelos seus assessores.
Este fato gerou nos servidores da instituição uma confiança tão grande no sindicato, que, começou a despencar uma chuva de denuncias e documentos endereçados a entidade.
As denuncias e documentos vinham de todos os lugares e cargos, principalmente da sede da Fundação, onde passavam a maioria absoluta dos documentos sigilosos que comprovavam as falcatruas e armadilhas do Governo e da Administração.
Após esta rebelião o Governo juntamente com a secretária de segurança Publica aramaram uma situação para desmoralizar os servidores, lembrando que a época quem comandava a secretaria de segurança era o Sr. Petreluzzi.
Para organizar a armadilha. o governo mudou a Presidência da FEBEM /SP, indicando para o cargo o EX- Presidente da OAB/SP, senhor Guido Andrade que tinha com o missão, desmoralizar o corpo funcional, sindicato e acabar com a contenção no Complexo Imigrantes.
Já em sua primeira reunião com a direção da entidade sindical, Guido Andrade tentou intimidar os dirigentes, ameaçando de processar e de prender estes caso novas paralisações e rebeliões viessem a ocorrer na instituição.
Porém os dirigentes do sindicato indignados ameaçaram chamar uma greve caso a Presidência resolvesse demitir servidores ou responsabilizar estes pela grave situação na qual passava a instituição.
Guido Andrade, após a investida do MP no Complexo Imigrantes, resolve demitir o Diretor de Divisão Lucimar de Souza e Afastar os demais Diretores do Complexo, colocando em seus lugares pessoas despreparadas que se alinharam aos adolescentes contra os servidores.
Em resposta os servidores do Complexo Imigrantes começaram a fazer a operação tartaruga e a cruzarem os braços, mas a Presidência da Fundação combinado com o Secretário de Segurança Publica Petreluzzi, tentaram forjar um flagrante de facilitação de fuga sobre os funcionários das alas A e B do Complexo.
Para tentar forjar tal flagrante, o novo diretor de divisão que acabara de assumir o cargo, facilitou a fuga de alguns jovens pelas portas das alas citadas, após o exito dos jovens, o secretário de segurança encaminhou para o Complexo o Delegado titular do 96 DP localizado na Av. Luiz Carlos Berrine, já que segundo um policial do 97 DP localizado ao lado do Complexo Imigrantes informou aos funcionários que o delegado dali negou-se a prestar-se a esse papel, pelo fato de conhecer muito bem a seriedade e o trabalho dos servidores daquele Complexo.
Ao chegar no complexo, o delegado enviado para aquela missão sem qualquer prova ou sem se quer saber quem eram os servidores do plantão como ficou comprovado no processo, prendeu 6 servidores e convocou a imprensa expondo a humilhação todos os servidores da instituição.
O Presidente do sindicato e seus diretores de imediato convocaram o corpo jurídico da entidade e dirigiram-se para o Complexo e para a delegacia, enquanto alguns diretores do sindicato levantavam informações sobre o ocorrido, o Presidente do sindicato e os advogados da entidade atuavam jurídica e politicamente na delegacia e diante das evidências de fraude no flagrante dos servidores, o sindicato expôs o Governador, Presidente da Fundação, Secretário de segurança e o Delegado do caso perante toda a imprensa.
Esta exposição ganhou força, quando um repórter da Rede TV flagrou a indignação dos policiais que realizaram a prisão, dos escrivães na delegacia que negavam-se abrir o inquérito e ainda dos que fizeram a transferência dos servidores presos para a Delegacia da Casa Verde.
A nobre atitude dos policiais ganhou enorme repercussão na mídia que por sua vez, abriu mais espaço para as denuncias do sindicato.
Como consequência, no dia seguinte o Juiz Corregedor do Fórum Criminal localizado no Viaduto Maria Paula, concedeu o Habeas Corpus, libertando os servidores presos.
Em seu despacho o Ilustríssimo Juiz desmoralizou de uma só vez, o Delegado, o Governador, o Secretário de Segurança e o Presidente da FEBEM/SP.
O despacho dizia que: " è publico e notório as péssimas condições dos servidores e adolescentes nas unidades da Febem/SP, prender os servidores com a desculpa que estes facilitaram a fuga dos internos é no minimo imoral, é tentar esconder a responsabilidade governamental e da própria instituição que nada tem feito para impedir tais ocorrências."
Desmoralizado, Guido Andrade com anuência do Governador Mário Covas endurece e demite 39 servidores do Complexo, o sindicato tenta por dez dias consecutivos negociar a reintegração dos servidores sem sucesso.
No dia 06. de outubro de 1999, uma matéria vinculada nas páginas amarelas da revista VEJA que trazia em seu contudo as graves denuncias feitas pelo Presidente do Sindicato alcançou repercussão internacional.
Nas denuncias, o sindicalista apresentava a verdadeira face da instituição FEBEM/SP, as condições indignas que viviam os internos e os servidores, bem como os reflexos destas condições em seus familiares.
As denuncias levantadas pela revista VEJA, mobilizaram a opinião do pais em favor dos servidores e dos adolescentes, colocando o Governo e a Instituição em xeque, 18 dias depois durante assembléia na porta do Complexo Imigrantes o sindicato decreta greve geral.
No primeiro dia de greve explode a maior rebelião da História da Fundação, durante 3 dias centenas de jovens fogem, outras centenas rebelados promovem a barbárie, com morte de jovens, com a cabeça cortada de um adolescente e lançada sobre o muro, caindo aos pés da imprensa que transmitia em rede nacional e internacional.
No segundo dia um funcionário foi jogado de cima da muralha e outros foram retirados de dentro do complexo com perfurações pelo corpo todo.
O Governo desesperado com as centenas de entrevistas que o Presidente do sindicato dava para as mais variadas redes de TV e radio no âmbito nacional e internacional, mandou os policiais prenderem o presidente do sindicato, tentando assim calar este. Porém cercado pelos trabalhadores e pela imprensa os policiais desistiram da ideia de prende-lo ali e ficaram a espreita esperando um momento que este estivesse sozinho.
Mas percebendo a armadilha da policia, o dirigente solicitou a um repórter da Rede TV ajuda, sendo atendido, saiu da porta do Complexo Imigrantes dentro do veiculo da emissora, fazendo baldeação para o carro do então prefeito da Cidade de Iaras José Xavier, que ali estava para acompanhar o evento, já que alguns dos servidores que ali trabalhavam moravam em sua cidade.
O Presidente do sindicato juntamente com outro diretor de Nome Adalberto foram levados até a sede da Central Unica dos Trabalhadores - CUT, chegando lá relataram ao então presidente da CUT Vicentinho e a Presidente da CNTSS Eliana a situação e a ameaça de prisão.
Estes por sua vez convocaram a imprensa e o senador Eduardo Suplicy e denunciaram a armadilha governamental.
Após 6 dias de greve e rebeliões por todas as unidades da Fundação, Guido Andrade pede demissão, o Governador acuado faz a promessa de morar na FEBEM/SP no Complexo Imigrantes, mas sabia que não conseguiria nada sem o apoio do corpo funcional e do sindicato.
Então em um ato de sanidade, o Governador chama ao Palácio dos Bandeirantes o Presidente do sindicato que foi acompanhado de um diretor e um trabalhador de base.
Durante a reunião apresentam as reivindicações dos trabalhadores, o Governador então da carta branca para seu assessor e futuro Secretário de Assistência Social Edson Ortega para atender as reivindicações.
No dia seguinte foi publicado no diário oficial a reintegração de todos os servidores demitidos, bem como um plano emergencial para o restabelecimento da instituição, além disso foi autorizado ao sindicato indicar representantes para acompanhar todas as apurações e sindicâncias relativas aos servidores, visando garantir a transparência e a lisura de toda a apuração.
Após esta vitória, os trabalhadores fizeram um rateio e realizaram uma grande festa na sede do sindicato, durante a comemoração entre sorrisos e lagrimas, todos sentiram a força que a categoria teve quando estava unida.
O sindicato e sua direção foram recompensados com a explosão de filiações que saltaram dos quase 800 sócios para mais de 3 mil sócios, demonstrando a confiança dos trabalhadores naquela direção.
O mais importante foi mostrar ao Governo, a Sociedade Civil, as Entidades de Defesa da Criança e do Adolescente, Ministério Publico e principalmente a Direção da Fundação que estes não mais usariam os trabalhadores como bode expiatório das ocorrências no interior da instituição, pelo simples fato dos trabalhadores estarem unidos e por estes terem um órgão de representação composto por uma direção incorruptível, sem medo de lutar pelos direitos e na defesa de seus representados.
Aquilo é o infernoO presidente do Sindicatodos Monitores da Febem conta como é a vida na maior prisão para meninos da América Latina Thaís Oyama
Veja – O presidente da Febem, Guido Andrade, chamou vocês, monitores, de trogloditas. Tem de ser violento para trabalhar na Febem? Silva – As pessoas acham que a Febem é um jardim-de-infância. Só que o menino que está lá dentro não é o que gosta da Angélica, que assiste à Xuxa. O menino que está na Febem perdeu praticamente tudo o que tinha de criança. Ele se mira no sujeito do Pavilhão 9: o grande assaltante de banco, o bandido que matou policiais, o que teve sucesso num golpe. São esses os ídolos dele. Veja – Não têm nada de criança? Silva – Têm, às vezes. Quando choram, por exemplo, parecem crianças. Veja – Choram por quê? Silva – Principalmente de saudade da mãe. Muitos são do interior, a família está longe, não pode visitá-los. Eles sentem falta. Veja – E numa rebelião? Silva – Aí não tem mais criança. Esse menino é aquele que, se precisar, te mata, porque você é o empecilho para o que ele quer. E o que ele quer é fugir. Veja – É possível perceber que vai explodir uma rebelião? Silva – Quase sempre sabemos quando vai ter uma. Veja – Por causa dos informantes? Silva – Por causa deles, mas, principalmente, por causa do clima. Quando a gente entra numa unidade e ela está toda quieta, naquele silêncio... Olha, dá até um frio na espinha, você sabe que vem coisa. Veja – E como começa? Silva – Com os gritos. É tudo no grito. Eles combinam: quando a ala x der o grito, a coisa começa. Veja – Que grito? Silva – "Vamos virar! Vamos virar! Virou! Virou!". Uma ala grita aqui, a outra ecoa ali, dali a pouco já é o inferno. É uma gritaria que ninguém ouve mais nada, porque nós, monitores, gritamos também, e tentamos gritar mais alto que eles. Veja – O que vocês gritam? Silva – "Já era! Já era! Acabou! Senta! Senta!" É uma competição de grito para ver qual a ordem que predomina. Mas nessa hora já está voando estilete, os meninos estão quebrando as mesas, os bancos. Parece uma guerra: as gangues se atracam, os mais fortes aproveitam para pegar os mais fracos, os jurados de morte viram reféns. Já vi menino sendo furado na barriga, no pescoço. Você se sente no meio do inferno. Veja – É nessa hora que os monitores perdem a cabeça? Silva – Não, porque você está preocupado em proteger sua vida e a dos meninos mais fracos. Até porque, se um morre, o plantão todo responde. O momento pior, quando muita gente perde o controle, é quando a rebelião termina. Você olha em volta e está tudo quebrado. Alguns meninos fugiram, outros sobraram. Estão lá, só esperando uma chance de começar tudo de novo. Você vê um colega saindo todo ensangüentado, pensa na sindicância a que vai ter de responder, está arrebentando de tensão e ainda vem um moleque e te provoca. Olhe, me desculpe, mas nessa hora tem companheiro que parte para cima mesmo e, se a gente não impede, ele é capaz de matar o menino. Veja – E os funcionários tentam impedir? Silva – Todo mundo. E a história acaba sempre do mesmo jeito: o companheiro comete a arbitrariedade, os colegas conseguem acalmá-lo, ele senta numa cadeira e aí desaba. Começa a chorar igual a criança – estraçalhado, os nervos em frangalhos. Veja – Vocês têm muitos monitores afastados por problemas psicológicos. Silva – Cento e cinqüenta. Os relatos mais freqüentes são de companheiros que acordam no meio da noite achando que estão numa rebelião e tentam esganar a mulher. Não é um caso, não. São muitos. É muita tensão, uma tensão que você acaba levando para casa. Outro dia, um colega estava arrasado porque o filho chegou para ele e falou: "Pai, você não era assim. Larga esse emprego". É duro ouvir isso. Veja – Por que alguns monitores foram vistos encapuzados em rebeliões recentes? Silva – Essa cultura de se encapuzar é dos meninos. É para não ser reconhecidos pelos outros companheiros ou pela polícia. Isso de funcionário se encapuzar em rebelião aconteceu no máximo umas três vezes. Veja – Mas se um funcionário tem a preocupação de esconder o rosto é porque não está bem-intencionado. Silva – Não está bem-intencionado ou está com medo. Você sabe o que é ser jurado de morte? Sabe o que é ser ameaçado por um menino que é chefe de quadrilha de banco e já matou mais de meia dúzia? Já pensou o que é enfrentar esse moleque cara a cara no meio de uma rebelião? Então, eu quero deixar claro: não é correto o funcionário da Febem entrar numa rebelião encapuzado. Mas eu posso até entender por que um ou outro fez isso. Veja – E por que um funcionário seria jurado de morte por um menino? Silva – Porque impediu a fuga dele, por exemplo. Veja – Ou porque deu um safanão mais forte nele um dia? Silva – Também. Ou porque bateu nele para defender um menino mais fraco. Veja – É fácil um adolescente fazer o monitor perder a cabeça? Silva – Olhe, quando um menino quer desestabilizar o sujeito... Veja – Faz o quê? Silva – Diz coisas, provoca. Tipo: "Ô, senhor, enquanto o senhor está aí, sua mulher está andando com outro, que eu sei". Daí para baixo. Mas o que deixa um funcionário furioso mesmo é quando o menino o engana. "Senhor, estou passando mal", ele diz. Você sai correndo para a enfermaria, todo preocupado. Chegando lá, ele vira as costas e some. Foge, ou tenta fugir. Ele te enganou e você ainda vai responder por facilitação de fuga. Aí, não é difícil perder a cabeça. Veja – Como o senhor descreveria a Febem para alguém que nunca esteve lá dentro? Silva – Fisicamente aquilo parece Auschwitz. É um campo de concentração. Parece o inferno. É parede desabando, banheiro entupido, menino tomando banho com água suja até a canela. No Complexo Imigrantes, são três chuveiros para cada ala de 400 adolescentes. Quando terminam, estão piores do que quando começaram. Fica resíduo de sabão no corpo, dá micose. As doenças de pele passam de um para o outro, porque a roupa de cama é lavada, no máximo, uma vez por semana. As roupas com que eles dormem são as mesmas com que jogam bola e jantam. Veja – E a comida? Silva – A comida é um arroz duro, com um feijão duro e um ovo duro e sem sal. Veja – Atividades? Silva – Não tem atividade nenhuma. Tem algumas horas de escola e futebol, quando tem bola. Mas vigora um esquema de revezamento para uso da quadra. Tirando isso, eles ficam sentados no chão do pátio. Veja – Sentados? Silva – Sentados. Não tem outro jeito, porque a média é de um monitor para cada 35 meninos, não de um para dois, como o doutor Guido Andrade falou. Então, não dá para eles ficarem andando para lá e para cá porque a vigilância fica impossível. Você tem de olhar se alguém está amolando um estilete, se está de olho no muro. Imagine o que é para um adolescente cheio de energia ter de ficar sentado no chão das 7 da manhã às 10 da noite. É horrível para ele e horrível para o monitor. Você vira um carcereiro. No curso de treinamento, ouvimos aquela novela de que o nosso papel é o de ser um agente transformador, que vai ajudar a fazer de um infrator um indivíduo estruturado. Eu entrei aqui acreditando nisso. É frustrante. Veja – Existe alguma coisa que funciona na Febem? Silva – Tirando alguns problemas, os internatos (unidades menores da Febem, com capacidade para quarenta adolescentes) funcionam. São lugares pequenos, em que a gente consegue se aproximar dos meninos, levar um vídeo para eles, tocar violão numa roda. Nos complexos como o do Tatuapé, onde eu trabalho, e no Imigrantes é impossível. Eu não posso nem cumprimentar um menino estendendo a mão para ele. Se fizer isso, ele apanha do grupo dele. Vão excluí-lo, considerá-lo alcagüeta. Para o adolescente ser respeitado pelos outros, tem de xingar o monitor, olhar bem feio para ele. É o código de lá. Nos internatos é diferente. Na Vila Nova Conceição, onde eu trabalhei, dava para promover campeonatos de futebol, convidar os meninos do bairro para jogar com os internos. Era bom para eles. Veja – Por quê? Silva – Porque eles vêem como é o mundo normal. Quando a partida acaba, os meninos da comunidade voltam para a rua. Os nossos ficam. Aí, a gente olha para eles: estão de banho tomado, sentados lá no módulo. Todos com a cara triste. Percebem que o menino do bairro àquela hora está na escola ou já foi para o salão de baile, está com a namorada. E eles estão lá dentro. Têm a sensação de que estão perdendo uma coisa boa. É um jeito de você ir trazendo valores positivos para eles. Principalmente nos complexos, os valores são completamente invertidos. Veja – É melhor quem é pior? Silva – Isso. Você percebe pelos detalhes. Chama um menino e fala: "Ô, Devair, vem cá, por favor". Ele vem cheio de má vontade. Aí, você diz: "Ô, ladrão, chega aqui". Ele corre, todo orgulhoso. É motivo de orgulho ser chamado de ladrão. É motivo de orgulho ser mais bandido do que o outro: se ele tomou um tapa, tem de devolver uma martelada na cabeça. É isso que a Febem ensina. A gente vê que, às vezes, chega à unidade um menino fraco, que precisa ser protegido. Ele sai e, na segunda internação, já volta diferente. Passa a usar os mesmos métodos que usaram com ele: agride os outros para se impor, toma a sobremesa do mais fraco. Aprende que é assim que se sobrevive lá. Veja – Além da fraqueza, o que mais o código de ética dos adolescentes não permite? Silva – Estupro, espancamento do pai ou da mãe, roubo de velhos, delação e furto de colegas. Quem faz isso tem de ficar em uma ala separada, que chamamos de seguro. Também é caso de morte ofender a mãe de alguém ou chamar o colega de pilantra, que significa bandido safado, sem caráter. É essa cultura que os teóricos que ficam dando palpite na Febem desconhecem. Eles acham, por exemplo, que é autoritarismo nosso ordenar que os meninos fiquem com as mãos para trás quando estão em fila. Só que eles não sabem o que significa para um menino de lá alguém encostar a mão nas nádegas dele, ainda que sem querer. É a humilhação máxima, caso para briga séria. Veja – E as visitas? Silva – Proibido até olhar. A irmã do colega passa, ela pode estar toda à vontade: o menino tem de baixar o olho. Vem a mãe, o irmão – os outros nem chegam perto. Não incomodam, porque a hora da visita é sagrada. Agora, tem os que dividem a sua com quem não recebe ninguém, e isso é uma das maiores demonstrações de amizade que se pode ter lá. Você chama o companheiro, deixa ele ouvir as conversas do mundo lá fora. Ele senta do lado da família, fica contente. Mas tem de ser muito amigo para dividir a visita. O "jumbo" eles dividem sempre. Jumbo é o cigarro, o sabonete que a família traz. Eles juntam o que ganham e distribuem entre os amigos que não têm visita porque a família mora longe. Agora, o menino que tem família na cidade e nunca recebe ninguém é malvisto. A leitura é a seguinte: o cara que não merece a consideração da própria família nem da malandragem do seu bairro é porque é muito safado. Ele fica isolado. Veja – Entre os funcionários também existe o monitor malvisto? Silva – Existem dois funcionários que não prestam e que nós expurgamos: o funcionário que é bandido, ou seja, que leva arma e droga para dentro da unidade, e o que corre na hora da rebelião. Veja – O senhor já passou um Natal na Febem? Silva – Natal, Ano-Novo, muitos. É a coisa mais triste do mundo, dá vontade de chorar. Veja – Tem alguma comemoração especial para os meninos? Silva – Tem uns enfeites lá, coitados, uns enfeites que eles fazem. Eles ganham uns panetones desse tamanhozinho. Tudo duro. Fica o maior silêncio. Eles ouvem o barulho dos rojões lá fora... Não gosto nem de falar, é muito triste. Os meninos choram, os funcionários choram. Veja – A Febem recupera? Silva – Olha, acho que só um menino que tem muita fé, muita perseverança e muito apoio da família consegue sair de lá com alguma chance de recuperação ou, pelo menos, igual ao que era quando entrou. A maioria sai muito pior. Eu tenho muita pena dos pais que têm crianças lá. O mais triste é saber que a maioria perdeu o filho por causa do crack ou porque não pôde dar um tênis de marca para ele. Esse filho vai parar na Febem e aprende lá tudo o que precisa para daqui a uns anos entrar na Casa de Detenção.
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